sábado, 10 de outubro de 2015

Otlassa

Millôr Fernandes (em suas Fábulas Fabulosas)

No dia seguinte, ele escreveu pro jornal: “Senhores, falam muito de assalto, e ontem a mim também aconteceu. Mas, tudo visto e examinado, não dou queixa nem exijo reparação da sociedade. Até estou profundamente agradecido às circunstâncias momentâneas – sem falar das permanentes – do meu destino. Primeiro, porque, num país rachado pelas costuras, e numa cidade onde, a qualquer hora dessas, vamos assistir a um duelo entre Jesse James e Doc Hollyday (e suas quadrilhas), esta foi a primeira vez que fui assaltado. Segundo, porque, tendo algum, até muito, dinheiro no bolso, o assaltante pôde se satisfazer com o que eu tinha e não me levou o essencial, a vida; se é que esta ainda vale alguma coisa, pois, aos 45 anos, já gastei – sem dúvida – três quartos dela. Terceiro, porque, pertencente às classes ditas privilegiadas, mesmo me levando muito, o assalto ainda me levou bem pouco. Quarto, porque, afinal, estou do lado de cá, e, ao fim e ao cabo, ainda prefiro estar do lado do cano a estar do lado do cabo, ser assaltado e não assaltante, pois na verdade fui assaltado uma só vez, num rápido momento, e logo depois voltei a ser aquilo que nós todos somos permanentemente, assaltantes; enquanto ele, por um breve instante assaltante, logo depois voltaria a ser o assaltado de sempre – a não ser que leve o ato de assaltar a tal constância, que substitua, pela dinâmica de ação, a condição social. Sem falar que corri o risco de morrer apenas uma vez, enquanto meu assaltante possivelmente já estará morto no momento em que esse prestigioso jornal publica esta. Assim, repito, esta não é uma carta de protesto pelas condições da violência vigente nesta cidade, mas um agradecimento público aos privilégios da minha vida.” 
Era um cínico ou um sábio? 

MORAL Quem é mais antípoda: nós ou os japoneses? 

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Li esse conto na adolescência e há uns anos venho procurando na internet e em algumas bibliotecas. Finalmente achei ontem nesse link aqui http://www.repositorio.ufc.br/ri/bitstream/riufc/12621/1/2014_tese_mhmsampaio.pdf